domingo, 19 de dezembro de 2010

"Se serviço público é bom, a judicialização é menor"

Quanto melhor o serviço público oferecido pelo Estado, menor a interferência do Judiciário nas políticas públicas adotadas pelo governo. Esta é a análise feita pelo constitucionalista português Jorge Miranda para explicar porque a Justiça do seu país não é tão procurada para solucionar conflitos sociais, como ocorre no Brasil a exemplo da busca pelo direito à saúde. No entanto, ele alerta: uma boa situação econômica não garante a concretização dos direitos sociais. Mais do que isso é preciso acabar com a corrupção, mal que aflige tanto o Brasil quanto Portugal.
"Não basta haver um bom crescimento econômico. É necessário que haja uma administração eficiente", afirmou o professor, que participou de seminário sobre direitos sociais na Escola da Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj), onde concedeu uma breve entrevista à revista Consultor Jurídico.
"Os países nórdicos têm poucos recursos econômicos, mas possuem grande nível de serviços sociais, porque são países onde não há corrupção. Há um grande sentido de cidadania. Houve um episódio, há alguns anos, bastante significativo. Uma ministra aceitou como presente uma caixa de chocolate. Isso foi tornado público e ela teve de se demitir. Entendeu-se que era um suborno. É uma coisa que nós não imaginamos nem em Portugal nem no Brasil", contou.
Segundo o professor, não basta que sejam elencados diversos direitos sociais na carta constitucional se eles não são cumpridos. Ele contou que em Constituições como a da Venezuela, China e Cuba há muitos direitos garantidos, mas não significa que eles são colocados em prática.
Considerado um dos maiores constitucionalistas portugueses e frequentemente citado em acórdãos do Supremo Tribunal Federal no Brasil, Jorge Miranda completará 70 anos em abril de 2011, quando se aposentará da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, onde é professor catedrático. "Psicologicamente, a expectativa de atingir os 70 está me afetando e, se ficasse em casa, morreria. Vou continuar a trabalhar enquanto Deus me der vida e saúde."
Leia a entrevista:
ConJur — O senhor diz que de nada adianta muitos direitos garantidos na carta constitucional, se eles não são efetivados, como acontece na Venezuela, China e em Cuba. Como avalia o respeito aos direitos sociais no Brasil?
Jorge Miranda — Acho que, nos 10 últimos anos, o Brasil conseguiu um grande avanço na efetivação dos direitos. Claro que há ainda muito a fazer; há muita desigualdade. Mas já se deu um passo muito grande. Se o Brasil conseguir manter o crescimento econômico que tem tido, acho que haverá condições para, não digo erradicar completamente a pobreza, mas para diminuí-la substancialmente. O Brasil está, neste momento, em uma boa situação econômica para realizar políticas públicas de maior aproximação das condições de igualdade dos cidadãos.
ConJur — Concretizar esses direitos sociais depende da economia?
Jorge Miranda — Depende da economia e também da administração. Não basta haver um bom crescimento econômico. É necessário que haja uma administração eficiente. Tão importante quanto criar boas situações econômicas é erradicar a corrupção, realizar a moralidade, a probidade administrativa, que é um princípio, aliás, constitucional. Portanto, racionalizar a administração, combater a burocracia é muito importante para a efetivação dos direitos sociais. Os países nórdicos têm muito poucos recursos econômicos, mas possuem grande nível de serviços sociais, porque são países em que não há corrupção. Há um grande sentido de cidadania. Houve um episódio, há alguns anos, bastante significativo. Uma ministra aceitou como presente uma caixa de chocolate. Isso foi tornado público e ela teve de se demitir. Entendeu-se que era um suborno. É uma coisa que nós não imaginamos nem em Portugal nem no Brasil. Era uma simples caixa de chocolate. Acho que situações econômicas são fundamentais, mas uma administração boa, eficiente, não corrupta, organizada é absolutamente essencial. Isso que penso que ainda não existe no Brasil nem em Portugal. Às vezes, não é questão de falta de dinheiro, e sim de desperdícios. Essa cultura de responsabilidade é que, infelizmente, não existe nem em Portugal nem no Brasil.
ConJur — O senhor disse que em Portugal não há uma judicialização dos direitos tão acentuada como há no Brasil. Mas há uma crítica também em relação a essa judicialização aqui.
Jorge Miranda — Acho que em Portugal não há tanto esse fenômeno por dois motivos. Por um lado, por uma certa autocontenção dos tribunais portugueses. Em segundo, porque algumas prestações que, no Brasil, são determinadas por meios judiciais, em Portugal, já existem. Por exemplo, em matéria de medicamentos, muitos são gratuitos ou os preços são muito baixos. Portanto, esse problema não existe. Quanto a leitos de hospitais, temos uma rede hospitalar grande, embora os hospitais públicos não cubram todas as necessidades e haja hospitais privados. São esses dois motivos. Julgo que, em alguns aspectos, o Poder Judiciário em Portugal poderia ir mais além. Mas não tem ido.
ConJur — Como o senhor avalia a Constituição brasileira? Ela é considerada muito detalhista por alguns constitucionalistas.
Jorge Miranda — Acho que, realmente, em muitos pontos, é muito detalhista. Por exemplo, certas imposições de atribuir determinado montante para determinadas políticas públicas, de dividir percentagens para estados e municípios, acho que é demasiado detalhista. Em muitos aspectos poderia ser simplificada. Mas acho que não deve haver um certo perfeccionismo constitucional. Podemos fazer críticas ao texto, mas este corresponde a uma realidade histórica. Em Portugal também foi feita uma crítica semelhante a nossa Constituição e, curiosamente, as revisões constitucionais que foram feitas aumentaram a dimensão da Constituição, acrescentaram mais normas. Portanto, acho que essa não é a questão fundamental. A questão fundamental é procurar uma interpretação razoável e sistemática da Constituição. Eventualmente, há matérias que acho que estão na Constituição Federal e que deveriam estar nas Constituições Estaduais. A Constituição não deveria ter ido tão longe, uma vez que produzida numa federação e que com estados tão diferentes. Não deveria haver uma uniformização tão grande. Mas, se houver uma interpretação razoável, não devemos nos preocupar, excessivamente, com isso.
ConJur — O senhor disse que o ensino superior deve ser pago, a não ser em caso de o estudante não poder arcar com os custos. No Brasil, algumas universidades públicas criaram um sistema de cotas para negros e para pessoas de baixa renda provenientes de escolas também públicas. Algumas leis foram sancionadas nesse sentido. No Supremo Tribunal Federal, há uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, questionando tais leis. O senhor entende que elas seriam inconstitucionais?
Jorge Miranda — Não acho que sejam inconstitucionais. Elas devem ser entendidas como medidas transitórias com vista a restabelecer a igualdade. São situações de pessoas que, por razões econômicas ou étnicas, não têm conseguido concorrer em igualdade com o cidadão em geral. Uma forma de restabelecer a igualdade é através de discriminações positivas. Portanto, acho que não são inconstitucionais desde que sejam de caráter transitório. A partir do momento que se consiga atingir um patamar de igualdade, elas não devem continuar. Na Europa, há cotas para mulheres no acesso a cargos políticos. Por exemplo, em Portugal, há uma lei que diz que, nas candidaturas a deputados, vereadores, não pode haver mais de dois terços de pessoas do mesmo sexo. Portanto, pretende-se, assim, garantir que ao menos um terço dos cargos sejam ocupados por mulheres. Se não fosse assim, o número de mulheres que exercem funções políticas seria bastante pequeno. Mas desde o momento em que se conseguir atingir a paridade, essas medidas devem desaparecer.
ConJur — O senhor vai se aposentar em 2011, quando completa 70 anos. Quais são os seus planos?
Jorge Miranda — Vou me aposentar, mas vou continuar a ensinar. Meu plano é ensinar no mestrado e doutorado; em princípio, até na graduação. Psicologicamente, a expectativa de atingir os 70 está me afetando e, se ficasse em casa, morreria. Vou continuar a trabalhar enquanto Deus me der vida e saúde.

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