domingo, 17 de janeiro de 2010

O Miasma da Segurança Pública

Outras vezes utilizei este espaço para compor algumas reflexões a respeito da estrutura de segurança pública de nosso país. Lastimei principalmente o descaso com a formação dos profissionais de polícia, baseando-me estritamente em experiência própria e em observações dos sistemas em vigor.
Não falei da formação pessoal, constante do caráter, da ética, da educação familiar e do aprendizado pedagógico regular que cada um traz de casa, mas sim da instrução técnico-profissional defeituosa e arcaica ministrada aos aspirantes a guarda pelas academias, escolas e centros de formação, tanto nacional quanto os espalhados pelos Estados.
Com muita relutância - e por não registrar avanço algum de lá prá cá -, hoje volto ao assunto.
A curta inteligência que mantém a separação das forças de segurança, chamando-as de ostensiva e judiciária, por si só se consubstancia em forte gravame e exacerba a situação infausta do sistema de policiamento ora disponível.
Para piorar este quadro e arruinar mais ainda o processo, a péssima qualidade do ensino das academias se reflete nos serviços de igual natureza prestados cotidianamente pelos policiais.
Não é ocioso lembrar que os centros de formação ditos militares ensinam o candidato a policial a ser prioritariamente soldado, ou seja: reagir como autômato à voz de comando da ordem unida; compreender sua posição dentro da rígida hierarquia castrense, lastreada na obrigação da continência e no culto obstinado à personalidade hipoteticamente infalível do superior. Enfim, inspiram no jovem aprendiz o conjunto dos simbolismos que compõe a vida em caserna, inoculando-lhe sentimentos e aprestamentos para uma improvável e quimérica guerra. Tudo! Menos doutrina de defesa social e respeito aos direitos do cidadão.
Não é para menos, preparativos para um conflito beligerante pressupõem treinamento de destruição total do inimigo, não considerações filosóficas acerca dos seus direitos.
No mesmo passo ordinário seguem as congêneres civis. Elas instruem seu neófito a portar-se unicamente como funcionário público, alheio à dinâmica do crime e aos anseios da sociedade por proteção. Torna-o jungido exclusivamente a ritos bacharelescos, de forte apelo cartorial, muito distantes do lema servir e proteger.
Logo ao entrar no exercício da profissão, o policial civil (federal ou estadual) – por osmose ou imitação - transmuda-se rapidamente em rigoroso amanuense, aderindo a fórmulas e praxes de duvidosa qualidade que, no fundo, garantem-lhe apenas a manutenção no emprego.
Não demora muito começa a se comportar como um dos “Três Gênios de Secretaria”, da obra de Lima Barreto*, cujo fragmento exemplificativo peço licença para reproduzir:
“...
Mas, como dizia, todos nós nascemos para funcionário publico. Aquela placidez do ofício, sem atritos, nem desconjuntamentos violentos; aquele deslizar macio durante cinco horas por dia; aquela mediania de posição e fortuna, garantindo inabalavelmente uma vida medíocre - tudo isso vai muito bem com as nossas vistas e os nossos temperamentos. Os dias no emprego do Estado nada têm de imprevisto, não pedem qualquer espécie de esforço a mais, para viver o dia seguinte. Tudo corre calma e suavemente, sem colisões, nem sobressaltos, escrevendo-se os mesmos papéis e avisos, os mesmos decretos e portarias, da mesma maneira, durante todo o ano, exceto os dias feriados, santificados e os de ponto facultativo, invenção das melhores da nossa República.”
A atividade de segurança pública é tudo menos isso. Arrisco ainda a afirmar que as academias são responsáveis por grande parte desse malogro.
Neste ponto creio que a elegante leitora e o atento leitor estarão se perguntando por que não apresento idéias factíveis para minorar o caos institucionalizado, ao invés de ficar somente martelando a situação presente.
Requeiro, então, mais uma vez, autorização para discorrer brevemente sobre o que minhas limitadas luzes permitem do assunto. Perdoem, desde já, os possíveis tropeços e escorregões no transcorrer do trato da matéria, visto não ser especialista na área como o pessoal da ONG Viva Rio e nem estilista como os redatores do site Comunidade Segura, mas sim um pobre policial aposentado que acumulou algumas experiências práticas ao longo dos quase trinta anos de efetivo serviço.
Devo alertar ainda que o tema tem elementos suficientes para produzir dois ou três tratados de alentado volume, mas pretendo não me alongar demasiado, não quero enfadar a distinta roda (meia dúzia, no máximo, pela última contagem).
O caso é o seguinte: além da União, mal ou bem cada Estado possui seus distintos centros de treinamento e formação policial. Digo distintos porque, em sua maioria, eles são física e doutrinariamente separados. Um formando policiais militares e outro, civis. A alegação corrente e claramente insustentável para segregação é apoiada no racioncínio tortuoso de que as instruções e ensinamentos de cada instituição diferem de caso a caso.
Sem menoscabo a qualidade de nenhuma dessas instituições de ensino, pergunto-me então por que diabos o governo federal, através do Pronasci, investe anualmente uma fábula de dinheiro na (re)formação e capacitação de policiais recém saídos dos bancos acadêmicos?
Normal seria se tais recursos fossem aplicados direta e exclusivamente na especialização e não para remendar habilitação incompleta, já que os cursos de formação, como o nome está a definir, deveriam preparar devidamente o profissional selecionado, antes de investi-lo no cargo e pô-lo armado nas ruas.
Talvez a resposta esteja no fato de que as escolinhas apliquem cursos tão lépidos e intensivos que os alunos saem antes de conseguir pronunciar “popocatepletl”.
Por outro lado, cabe apenas na cabeça do menos notável dos asininos o argumento de que uma grade curricular única não serve para ser partilhada por alunos de ambas as forças, por estarem eles submetidos a regimes diferenciados de aprendizado.
Ora, qual o fundamento básico da profissionalização do policial? Segurança pública, é claro! Então, por que impor uma inadequada apartação das escolas? Respondo de novo. Porque a permanência do status quo é conveniente para perpetuação de certas fatuidades pessoais e serve para manutenção de alguns interesses publicamente inconfessáveis. Nada mais que isso. Pois não há estudo, pesquisa ou fundamentação doutrinária em todo mundo que embase ou justifique esta separação.
Nota-se que a perversidade deste sistema dual consome inutilmente recursos públicos em duplicidade e torna a defesa social gravosa para o cidadão e desnecessariamente dispendiosa para o Estado. Sem falar na  inexistência da esperada contrapartida em eficiência, em vista do volume de capital empregado.
Só para o distinto público ter uma vaga idéia do tamanho do desperdício, você, contribuinte, paga para construir e manter dois centros que, a rigor, ministram a mesmíssima formação; desembolsa para estruturar duas redes informacionais que não conversam entre si e nem trocam informações sobre criminalidade; concorre com seu imposto para implantar e funcionar duas estações de telecomunicações, que também não foram apresentadas uma a outra e funcionam como ilhas autônomas, cada qual com seu respectivo dono etc.
Ou seja, é um sistema burro, perdulário e ineficiente, que contempla menos o cidadão contribuinte que os gandolas e aneludos encarapitados no andar de cima, interessados somente na primazia dos respectivos umbigos.
Todavia, não era disso que vinha a discorrer. Comentava eu as deficiências da formação técnico-profissional dos policiais, quando me deixei levar por divagações acerca das incoerências do sistema dual sobre que estão embasadas as instituições policiais no Brasil.
Ainda assim, creio que as matérias guardam estreita pertinência, quando não, ao menos correlação mútua. Sem mais delongas, voltemos então incontineti para nosso assunto principal.
Prometi acima apresentar idéias que trouxessem luz ao debate que no momento se acalora. Em verdade, a conclusão que se chega com menor esforço, após todo este contorcionismo gramatical, é que a melhor saída para o problema seria a junção da formação profissional do agente de segurança pública em uma única escola e sob única grade curricular.
Previno não querer aqui entrar no mérito da discussão sobre unificação ou integração das polícias - este assunto é muito doloroso para alguns e dogma santificado para outros. Ademais, é questão inócua para o momento, por transcender outras mais urgentes que demandam medidas de caráter mais imediatista.
Quanto às instalações físicas dos centros porventura desativados, certamente poderão abrigar estabelecimentos públicos de ensino regular para atender a criançada das redondezes, senão hospitais estaduais ou postos de saúde. Enfim, destinação comunitária e de melhor utilidade não lhes faltarão.
Pronto! Cumprido o prometido. Eis aí os sinais indicativos do singelo caminho a ser trilhado para início da tão esperada reforma. Agora resta saber quem será o corajoso estadista brasileiro que irá atacar de frente este imbróglio.
Sim, pois é preciso ser estadista e corajoso para demolir igrejinhas enraizadas ao longo do tempo dentro desta estrutura. Não só coragem, mas também desprendimento e desprezo ao fisiologismo, tão em voga no nosso cenário político.
Tenho por certo que não será, de modo algum, um desses político de carteirinha (não confundir com o “zoon-politikon” de Aristóteles, que somos todos nós) que porá este projeto para andar. Este tipo preocupa-se mais com o voto que com  interesse e aspirações do público, e no Brasil os temos para dar, vender e exportar. Agora, a figura do estadista é avis rara, senão extinta em nosso meio.
Mesmo assim, não vamos esmorecer na tentativa de melhorar o nosso país. Parodiando Carlos Alberto da Nóbrega, eu de cá com minha pena, você de lá com seu senso crítico, não abandonaremos jamais as trincheiras. Porque o Brasil é nosso!

Por Tânia Alencar 

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