domingo, 22 de agosto de 2010

Carreira única e gestão por competência

por Luciano Porciuncula Garrido

“O que nos causa problemas não é o que nós não sabemos, mas o que sabemos que não é como está” – W. Rogers

A carreira única nas corporações policiais, mais do que uma questão de justiça, atende às exigências de uma gestão verdadeiramente moderna. Os gerentes das organizações bem-sucedidas, que pautam suas metas pelo critério da eficiência e da produtividade, já atinaram para a importância de administrar seus quadros por meio das diretrizes traçadas em uma “gestão por competência”. Levando-se em conta esses pressupostos, convém dizer que os critérios de competência jamais poderão ser adotados satisfatoriamente se uma organização optar ao mesmo tempo pelo engessamento na estrutura de suas carreiras, de tal forma a que se impeça a mobilidade dos seus quadros funcionais. Sem possibilidades de ascensão nas carreiras, não há como criar espaços para a tão almejada “meritocracia”.

Outro dado a ser considerado recai sobre o modo como as corporações policiais têm recrutado, selecionado e contratado seu pessoal. Não tendo sido criados até momento critérios científicos para embasar os processos seletivos para carreiras policiais, as regras estabelecidas pelas bancas examinadoras de concurso vêm se pautando por parâmetros de caráter arbitrário (ou seja, sem caráter algum). Para que critérios válidos sejam estabelecidos nos processos seletivos, faz-se necessário um amplo estudo acerca das tarefas ocupacionais executadas por todos os cargos da carreira policial (a chamada análise de cargos). Somente a partir daí, será viável traçar um perfil profissiográfico fidedigno, objetivo, deixando de lado os palpites amadores sobre o que venha a ser verdadeiramente o trabalho policial e quais os atributos esperados para se engendrar um bom policial – seja nos cargos de execução, de coordenação ou supervisão. 1

Vale constatar que a metodologia apontada, em que pese não seja utilizada pelas corporações policiais, são de amplo domínio nas áreas de gestão de pessoal e comportamento organizacional, seja qual for o ramo de atividade considerado2. Uma metodologia científica bem aplicada nos processos seletivos é o único meio de definir quais serão as qualificações necessárias aos cargos, de maneira a que os candidatos eventualmente escolhidos venham a executar suas futuras funções com relativo sucesso. Diferente disso, qualquer critério seletivo que imponha restrições em seu edital – seja o critério de escolaridade ou diplomação específica – deverá ser fundamentado sob os cânones da ciência, isto é, mediante um estudo nos moldes referidos, qual seja: análise de cargos, perfil profissiográfico validado a partir da descrição dos cargos, e instrumento também válido para mensuração do referido perfil. Se tais medidas não forem adotadas com o rigor técnico, muito provavelmente se fará graves injustiças nos processos seletivos, porquanto irão atentar contra as regras e princípios fundamentais que regem as leis de licitação (no caso específico, o concurso público)

Mas a falta de informação técnica a esse respeito não se reflete apenas na precariedade dos processos seletivos efetivados até o momento. Ao estabelecer critérios funcionais infundados ou mesmo aleatórios, as políticas de recursos humanos, em geral, e a estruturação das carreiras, em particular, passam a carecer não só de respaldo técnico-científico assim como, não diria legalidade, mas legitimidade. Quando, por exemplo, se cria nas corporações policiais cargos de nível superior e se estabelece que um deles é “mais superior” que o restante, será preciso fundamentar tal assertiva. Esse coeficiente de atributos profissionais que submete hierarquicamente alguns dos cargos de nível superior a outros tantos se dá por meio de qual critério? Há algum estudo científico que ampare um arranjo desse tipo? Em uma corporação policial, um bacharel em Direito que exerça suas atividades em cargo também de nível superior – porém situado numa escala hierárquica inferior – se diferenciaria em qual aspecto de outro bacharel em Direito investido em cargo que lhe seja hierarquicamente superior? Nesse caso, tudo se resumiria apenas ao fator concurso público?

A grande dificuldade, porém, reside precisamente nesse “fator” concurso público. É possível que as corporações policiais passem doravante a estabelecer critérios válidos para seus processos seletivos, desde que, como foi demonstrado, adotem uma metodologia científica para o mapeamento das atividades e tarefas pertinentes aos seus cargos. Ainda assim, as bancas examinadoras, e as próprias corporações policiais, se verão numa grande enrascada ao ter que forjar mecanismos e instrumentos também válidos e eficazes para avaliar e mensurar nos candidatos os atributos funcionais que venham a ser contemplados por um dado perfil profissiográfico.

A atividade policial requer uma série de “expertises”, sobretudo nos seus aspectos atitudinais e psicológicos, que são complexas e de difícil ponderação. Não é por outra razão que tem causado uma série de controvérsias e litígios nas várias etapas dos processos seletivos. Ademais, para incrementar ainda mais a dificuldade, os cargos situados na escala superior da hierarquia exigem toda uma experiência profissional de gerenciamento que muito dificilmente seria auferida em concurso público nos moldes em que são feitos, inclusive para corporações policiais. Como forma de compensar isso, é possível até que se criem as “provas de título” para carreiras policiais, contemplando a variável “experiência profissional” nos certames, mas essa apreciação será sempre genérica, a partir do requisito impessoal do “tempo de efetivo serviço”. Nesse caso, um policial que tenha vinte anos de péssimos serviços prestados a instituição a qual pertence terá o mesmo tratamento que um excelente policial com os mesmo vinte anos de serviço. Nas etapas do concurso público, como se vê, não é possível à banca examinadora avaliar conteúdos quando se trata da variável “experiência profissional”. Tanto é verdade que esse tipo de avaliação nunca foi feito em concurso público. As bancas examinadoras teriam que utilizar as avaliações de desempenho realizadas pelas próprias instituições públicas ao longo da carreira do servidor. Mas avaliações de desempenho existem no serviço público? Sabemos que não existem, e se existem estão longe de serem objetivas...

Como contraponto, podemos dizer que na esmagadora maioria das organizações modernas, os cargos de mando, ou seja, de supervisão, coordenação e controle, são ocupados pelos próprios integrantes da organização que, com uma experiência e vivência profissional decantada ao longo da carreira, neles se encontram por mérito e esforço pessoal. Muito dificilmente se encontrará organizações que contratem pessoas de fora para ocupar seus cargos de mando, salvo na hipótese de que não haja na própria organização pessoas habilitadas para tal função. O acesso aos cargos de chefia, portanto, se dá preferencialmente por todos aqueles que compõem a instituição, até porque esse critério é um dos mais poderosos instrumentos de motivação no trabalho. Nesse particular, sobre informação técnica.

Por fim, nada mais justo que as instituições policiais implementem uma carreira única que tenha, para o ingresso na instituição, uma única “porta de entrada”. Ao contrário do que comumente se alega contra a ascensão funcional, esse modelo de estruturação da carreira não irá cercear quaisquer direitos dos que porventura queiram ingressar na carreira policial. Se de fato desejarem um dia tornar-se policiais, ingressarão democraticamente “por baixo”, e com humildade irão progredindo na carreira, pari passu, com seus esforços e merecimentos.

NOTAS

1 Ver Mal-Estar na Segurança Pública (Luciano Porciuncula Garrido & George Felipe de Lima Dantas)
2 Comportamento Organizacional, Stephen Robbins, 1998; Gestão de Pessoas Idalberto Chiavenato, 1999; Análise Ocupacional por Tarefas/Job Task Analysis -- Jornal/Journal: Boletim Policial do FBI - Volume: 58 Edição:11/FBI Law Enforcement Bulletin - Volume:58 Issue:11 Datado de/Dated:(Novembro de 1989) (November 1989) Páginas/Pages:9-13 Autor(es)/Author(s): T J Jurkanin

Revista Jus Vigilantibus, Quarta-feira, 16 de setembro de 2009

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