quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Brasil tem apenas um preso para cada 1 mil assassinatos (Impunidade e ineficiência)





Estudo revela que, de cada 1 mil homicídios no país, quatro autores são condenados, mas só um é preso. Promotor atribui culpa ao direito penal, que apenas funciona para punir pobre
Ernesto Braga


Tenho 80 processos me esperando ali. Se abrir um por um, não tem nenhum processado que ganha acima de dois salários mínimos", Marcelo Cunha de Araújo, doutor em direito constitucional
De cada 1 mil homicídios ocorridos no Brasil, 50 inquéritos policiais chegam ao fim apontando a autoria do crime, quatro acusados são condenados, mas apenas um suspeito fica efetivamente preso. Os números embasam estudo sobre o sistema penal brasileiro feito pelo promotor de Justiça Marcelo Cunha de Araújo, doutor em direito constitucional e mestre em direito processual: “No país, impera a impunidade quase que absoluta. Não é absoluta porque há no sistema prisional um número até excessivo de presos. Ocorre que o sistema é mal aplicado”, afirma. Para ele, a impunidade é fomentada pelo direito assegurado na Constituição de o acusado responder em liberdade até que se esgotem todos os recursos no Supremo Tribunal Federal (STF), o que pode durar mais de 30 anos, correndo o risco da prescrição dos crimes.
Em 2008, a Polícia Civil contabilizou 811 inquéritos de assassinato em Belo Horizonte, mas apenas 300 julgamentos foram feitos nos dois tribunais do júri do Fórum Lafayette. De janeiro a junho deste ano foram 366 homicídios e 170 julgamentos.
O mais grave, de acordo com o promotor, é que, embora valha para todos os cidadãos, na prática esse direito só é conquistado pelas pessoas de maior poder aquisitivo. Aos seus alunos do curso de direito na PUC Minas o promotor se despe do que chama de “carapaça do juridiquês” para apontar, em bom português, as falhas do sistema penal que geram a impunidade, corroborando, com a propriedade de um jurista, o que se tornou senso comum nas rodas de bate-papo: quem tem condições financeiras para constituir um advogado competente consegue se esquivar das punições previstas no Código Penal, sobretudo da prisão. “O direito penal é totalmente esquizofrênico, não funciona. O mais triste é que a gente que trabalha no dia a dia vê que ele é só para o pobre. Tenho 80 processos me esperando ali. Se eu abrir um por um, não tem nenhum processado que ganha acima de dois salários mínimos”, disse Araújo, que trabalha no Juizado Especial de Contagem, na Grande Belo Horizonte.
Classes
De acordo com a natureza do delito, o promotor faz uma distinção entre “crime de rico e de pobre”, afirmando que eles são tratados de forma diferenciada pelas regras do sistema. O primeiro é exemplificado com os de colarinho branco, como sonegação fiscal, contra o sistema financeiro e lavagem de dinheiro, enquanto na outra categoria se enquadram os crimes violentos (homicídio, tráfico de drogas e roubo). “No Brasil não há qualquer punição para crime de colarinho branco. A pessoa pode desviar o dinheiro que quiser, pode haver prova de tudo, mas os advogados conseguem barrar isso na Justiça. E os advogados fazem isso não por serem antiéticos, mas porque são pagos para defender seus clientes com as medidas que o sistema oferece. Também não é por culpa dos juízes, que têm de seguir este emaranhado de normas”, disse o promotor.
Por outro lado, ele destaca que 90% da população carcerária é autora de crimes violentos. “Suponhamos que um rico e um pobre cometam homicídio. Até o último recurso, a regra seria a pessoa responder em liberdade, a não ser que ela ofereça risco. Qual é o conceito de risco que o direito usa? Por coincidência ou não, se o sujeito é pobre, ele oferece risco; se é rico não oferece. Aí você começa a desvendar um pouco como que, com as mesmas normas, se criam duas classes.” Normas que, segundo o especialista, atrasam todas as fases do processo criminal.
Livro
As contradições do Código Penal são tema do livro Só é preso quem quer – Impunidade e ineficiência do sistema criminal brasileiro, lançado recentemente pelo promotor. Na obra, ele foge da linguagem jurídica para detalhar, com riqueza de exemplos, as minúcias do direito penal, classificado por Araújo como a “criação das normas abstratas em relação ao comportamento humano, para apontar o que é correto ou não na sociedade”. “A impunidade se constrói por meio de microdecisões do sistema, desde o ato da prisão até depois da sentença do juiz. Quando o preso pode progredir de regime, do fechado para o semiaberto, é solicitado que ele apresente uma comprovação de que pode trabalhar fora. O rico consegue apresentar, sai para trabalhar e depois volta para a penitenciária. Enquanto isso, o pobre, que não vai conseguir essa carta, continuará no fechado.”


Crime no trânsito


Fotos: Sidney Lopes/EM/D.A Press - 17/4/09

 Francês Olivier Rebellato (abaixo) feriu cinco jovens em batida na Savassi, mas já retornou livre para o seu país



Depois dos crimes de colarinho branco, apontados como os campeões da impunidade no Brasil, os de trânsito são os que menos são passíveis de punição. Para o promotor Marcelo Cunha de Araújo, a criação da Lei Seca, que tornou rigorosas as regras para os motoristas, não surtiu o efeito desejado, pois os condutores não são obrigados a soprar o bafômetro. 




“Para ficar mais rigoroso, ficou estipulado que o motorista não pode ingerir qualquer quantidade de álcool e pegar o volante. Flagrante de embriaguez é considerado crime, com pena de seis meses a três anos de prisão. Só que não se previu pena para quem não se submete ao bafômetro”, destaca. 


Um dos exemplos claros de crime de trânsito cujo autor saiu impune, apontado por Araújo, ocorreu na capital em 17 de abril. O francês Olivier Rebellato, de 20 anos, conduzia seu Chevrolet Captiva em alta velocidade pela Região da Savassi, Centro-Sul ds BH. Com suspeita de embriaguez e sem permissão para dirigir no Brasil, bateu num Mercedes Classe A com cinco jovens. Josiane Ramos, de 27 anos, ficou gravemente ferida e vive em estado vegetativo. 


O francês pagou R$ 5.935 de fiança e não foi preso. Ele responde ao processo de crime de trânsito, pelo qual pode pegar até cinco anos de cadeia. Mas em junho teve seu passaporte devolvido e voltou para a França. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais concedeu liminar garantindo a devolução do passaporte do motorista, sob o argumento de que Olivier tem residência e um negócio próprio em BH e não abandonaria o Brasil para se furtar da eventual aplicação da lei penal. 


Na semana passada, o advogado das irmãs, Marcos Luiz Egg Nunes, impetrou uma ação na tentativa de confiscar o automóvel do francês. “Isso não representa nada diante dos gastos que a Josiane tem com o tratamento. Acho que ele deveria responder preso”, ressaltou o promotor. 


CLAMOR DA MÍDIA Para Araújo, o médico Fellipe Ferreira Valle, de 29, que em 16 de setembro matou atropelada uma doméstica no Bairro Prado, na Região Oeste de BH, só permanece preso por causa da dimensão que o caso tomou na mídia. “Pode ser que este caso seja uma exceção das exceções, devido à repercussão na mídia. Os envolvidos em crime de trânsito não ficam presos, quando são condenados pegam penas de prestação de serviço e a vítima não tem qualquer reparação.” 


O médico fugiu de abordagem policial, atropelou um militar, dirigiu na contramão e em alta velocidade por vários quarteirões e só parou ao bater contra um carro, matando uma pessoa e deixando três feridas. Ele responde por infração a 14 artigos do Códigos Penal – entre eles homicídio doloso. (EB)



Quem se apresenta fica livre
Jurisprudência considera que suspeito que vai espontaneamente à polícia pode se livrar de flagrante e ganhar liberdade. Em outros países, acusado é preso na primeira condenação


Renato Weil/EM/D.A Press - 10/9/09

Acusado de matar sócio em boate na Cidade Jardim, empresário Leonardo Cipriano responde a processo em liberdade

Uma das regras do sistema penal muito criticada pelo promotor Marcelo Cunha de Araújo, mestre em direito processual, doutor em direito constitucional e autor do livro Só é preso quem quer – Impunidade e ineficiência do sistema criminal brasileiro, é a que garante a liberdade ao acusado que se apresenta à polícia espontaneamente. Ele explica que a norma é válida mesmo se a apresentação ocorrer dentro do prazo do flagrante. De acordo com o jurista, esse prazo não é definido pelo Código Penal, que só menciona “logo após o crime”. A jurisprudência considera até 24 horas depois, mas o juiz é quem decide, conforme o caso.

“Tem tantas minúcias no processo penal, sempre favoráveis à impunidade, que se você matou uma pessoa ontem à noite, a polícia não o está perseguindo e você chega na delegacia e confessa que matou o fulano, a Justiça fala que a apresentação espontânea impede o flagrante. Isso não tem lógica nenhuma, é uma construção totalmente bizarra, coisa de índio brasileiro, tupiniquim, que não sabe interpretar as normas. Em qualquer país sério isso não ocorreria”, criticou Araújo.

Um dos casos recentes ocorridos em Belo Horizonte envolveu o empresário Leonardo Coutinho Rodrigues Cipriano, de 32 anos, que confessou ter matado o sócio Gustavo Felício da Silva, de 39, com um tiro na cabeça, dentro da boate Pantai Lounge, na Avenida Prudente de Morais, no Bairro Cidade Jardim, na Região Centro-Sul, que pertencia aos dois. O crime foi em 28 de agosto e o corpo de Gustavo, em avançado estado de decomposição, foi encontrado três dias depois.

Acompanhado do seu advogado, Leonardo Marinho, Leonardo se apresentou no Departamento de Investigações da Polícia Civil, no Bairro Lagoinha, Região Noroeste, em 2 de setembro, quando confessou o assassinato e entregou a arma do crime. Ele foi liberado e responde em liberdade por homicídio e ocultação de cádaver. A pena prevista é de 12 a 30 anos de prisão. A Polícia Civil ainda não concluiu o inquérito. “A família de Gustavo aguarda a conclusão do trabalho policial e prefere não se manifestar”, disse o advogado Hermes Guerrero. “Lutamos durante 20 anos contra a ditadura para a instauração do estado democrático de direito, com todas as suas garantias. Pelo visto, estão querendo acabar com uma delas, que é a presunção da inocência”, rebateu Marinho.

Araújo ressalta que em alguns países, como nos Estados Unidos, a prisão do acusado é decretada assim que o Ministério Público oferece a denúncia contra ele. Em outros, como na França, o acusado perde o direito de responder em liberdade assim que o juiz de primeira instância o condena. “No Brasil, isso só ocorre depois de esgotadas todas as chances de recurso nos tribunais de Justiça dos estados (segunda instância), Superior Tribunal de Justiça (STJ) e Supremo Tribunal Federal (STF).”

Ernesto Braga






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